terça-feira, 19 de julho de 2011

Noites em Palermo

O velho relógio de parede marcava três horas da madrugada quando entrei no boteco mal iluminado de uma rua qualquer em Palermo Viejo. Apenas seis pequenas mesas redondas, cadeiras e um balcão onde despontava a máquina registradora mais antiga do mundo. Atrás do balcão, garrafas empoeiradas não identificáveis. Nas paredes descascadas, fotos de lugares desconhecidos. Nenhum freqüentador, ninguém para atender. Embora sentisse uma necessidade urgente de beber algo, dei meia volta e me dispus a sair em busca de outro local mais convidativo. Foi então que uma voz esganiçada e autoritária chamou:
— Volte aqui, rapaz!
— Falou comigo? — consegui dizer.
— Você está vendo outra pessoa? — resmungou a voz estridente.
Duas semanas em Buenos Aires, cidade que conheço tão bem quanto um portenho. Entretanto, a transferência repentina, justo num momento de crise pessoal, deixou uma sensação desagradável de perda do controle sobre minha vida — como se fosse possível ter controle sobre alguma coisa.
Assim, dividido e contrariado, cheguei à cidade que sempre me foi tão cara. Fiz de conta que estava a passeio, instalei-me no pequeno apartamento alugado pela empresa e tratei de atordoar-me, percorrendo bares e cafés nas noites insones. Durante o dia, o torpor dos vinhos de Mendoza tornava mais penosa a tarefa de gerenciar a filial, há pouco instalada na Avenida Santa Fé.
        Voltei-me, curioso, e custei a distinguir o vulto do velhote sentado à mesa próxima de uma porta interna. Encoberto por uma nuvem de fumaça, chapéu de feltro, lenço ao pescoço, lembrava um compadrito dos subúrbios, retratado por Borges.
        — Sim?
        — Sente-se! — ordenou.
        Tive o impulso de mandá-lo à merda, mas sua idade avançada levou-me a sentar em silêncio na cadeira que ele apontava. A seguir encheu dois pequenos copos com o que me pareceu ser conhaque, bebendo o dele de um só gole.     
— Jerez de La Frontera — disse-me. Beba!
        Bebi todo o líquido dourado escuro; o efeito foi estimulante. Passei a sentir-me à vontade na companhia da estranha criatura. O gestual incluía maneirismos desconhecidos e o linguajar criollo revelava expressões fora de uso que o meu espanhol acadêmico custou a decifrar. Depois de algumas doses ele disse:
        — Espero por você há bastante tempo.
        — Como assim? — perguntei.
        — Não se apresse; logo você vai entender — falou, com um risinho abafado que mais parecia um cacarejo.
        Pela primeira vez, sentia-me um estranho em Buenos Aires. Daria qualquer coisa para retomar a afinidade que marcou minhas viagens anteriores, a trabalho ou passeio. Qualquer coisa que me devolvesse o encantamento de redescobrir cada rua, cada café, praça, em bairros onde a vida escorria prazerosa. Lembrei-me, então, de Palermo Viejo, onde Borges viveu alguns anos da juventude. Encarei a idéia como um bom augúrio e pus-me a visitar, com olhos de detetive, o bairro, hoje destituído do charme de tanto tempo atrás.
        Não dei a menor importância às enigmáticas palavras do velho. Jerez, ou não, o conhaque era magnífico e, pela primeira vez desde minha chegada, me sentia ótimo. Continuamos a beber, até o momento em que se esgotou o conteúdo da garrafa e meu estranho anfitrião falou:
        — Agora posso me retirar. À noite, atrás do balcão, você encontrará outra garrafa de Jerez. Aproveite — disse, com um sorriso diabólico. — Adiós!
        Percebi, com horror, que ele tinha minhas roupas, meu rosto, até a voz era a mesma. Quanto a mim, encoberto por uma nuvem de fumaça, chapéu de feltro, lenço ao pescoço, lembrava um compadrito dos subúrbios, retratado por Borges.