segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Caçada Noturna

Encontros noturnos não costumam ser confiáveis. Ele gosta de repetir essa frase, como um lema para convencer-se de que predadores de sua espécie adoram riscos para tornar a caçada mais emocionante. No entanto, a jovem do outro lado da pequena mesa, naquele desconhecido bar da cidade baixa, parece uma comportada secretária a dissipar lembranças de um insípido dia de trabalho em algum escritório do bairro. O discreto conjunto preto de saia e blazer, acompanhado de sapatos e bolsa em tom grafite, só faz reforçar a primeira impressão. O rosto claro e bem desenhado; boca grande de dentes muito brancos, nariz e orelhas em harmonia, contrastando com os cabelos negros e exageradamente curtos. O queixo um tanto prolongado sugere uma postura arrogante. Adornos de qualquer tipo estão ausentes, inclusive nas mãos bem cuidadas de dedos muito longos.
Os olhos merecem um capítulo à parte. Escuros e enormes, analisam, sem nenhum constrangimento, em cada detalhe, a figura do homem que veio sentar-se diante de seu campo de observação sem pedir licença. Embora demonstre pouca disposição para conversar, não consegue afastar o persistente e inesperado parceiro de mesa. O quase monólogo, movido por repetidas doses de uísque e quebrado, de vez em quando, por um monossílabo, tem vida longa.
Depois de um tempo que lhe parece bastante, esgotado o arsenal de perguntas, comentários e ditos espirituosos, o caçador impaciente paga a conta e convida a mulher para sair. A resposta é uma rápida inclinação de cabeça.
Na rua, ela ignora o convite para um passeio de carro até o rio, com a cumplicidade de uma lua cheia que se esmera em vencer umas poucas nuvens escuras. Põe-se a caminhar à frente dele, sem olhar para trás, o que o obriga a segui-la, perplexo pela conduta inesperada. Algumas quadras depois, a caminhada tem seu final numa surpreendente ruela fora do tempo, onde pequenas casas muito antigas e no estilo açoriano amenizam a impaciência e irritação do acompanhante.
A jovem se detém diante de uma casinhola branca, ornada por uma porta e duas janelas azuis; resgata de sua bolsa uma grande chave de ferro, tão antiga quanto a edificação e que, após algumas voltas barulhentas, abre caminho para ambos. Ela convida-o a entrar com um gesto sóbrio; ele repete o convite mudo, cavalheiro, e a segue. De imediato, é atingido por um cheiro acre não identificado. Estranhas imagens lutam por se libertar da memória, represada pela elevada dose de álcool que ingeriu.
Sacode a cabeça para dissipar as névoas internas, enquanto a moça trata de acender velas num velho castiçal sobre a mesa redonda. Isso feito, depois de observá-lo mais uma vez, abre a porta de um quarto. Ele interpreta o gesto como uma capitulação da jovem, depois de horas em que usou de todas as estratégias conhecidas para vencer-lhe a resistência. Comemora com um sorriso de triunfo o que julga ser a vitória final e, sentindo-se confiante, busca maior proximidade física. Nesse momento, o cheiro, numa concentração bem maior, provoca-lhe vertigem e ele entra num estado de torpor e semi-inconsciência.
Após muito tempo, recobra plena percepção e sente-se contido por algo que o envolve e frustra qualquer tentativa de movimentar-se. A fraca luminosidade da rua, através de uma janela entreaberta, não o ajuda na identificação do local e nem lhe esclarece sobre o ocorrido. Apenas um odor forte, nauseante.
As pupilas dilatadas recebem algum auxílio das velas acesas na sala, através da porta aberta. Melhor seria nada ver. Escura, imensa, ela se aproxima, examinando tudo com os olhos descomunais. Sem pressa, desliza pela imensa teia que ocupa todo o quarto, enquanto move as garras num ritmo hipnótico.

Imagem de Rogério Martins

"Entre sombras", Caçada Noturna

Disponível nas livrarias Saraiva, Cultura e Palavraria, entre outras

Um comentário:

Lua em Libra disse...

Saul esse teu conto, como tantos outros, por vezes me dá medo. Em outras, angústia, deslumbramento, curiosidade. Seja como for, nunca, mas nunca mesmo, servem para acomodar-se, sair igual depois de ler. Não são do tipo que passam a mão na cabeça do leitor e dizem: "calma, está tudo bem." Não dizem! Gosto disso. Parabéns. Beijo.